Em casa
Dificilmente haverão dias tão intensos, tão marcantes nas nossas vidas como o dia em que atravessamos a porta de saída da neonatologia e trazemos o nosso bebé para casa.
Pode ter sido um internamento de poucos ou de muitos dias, mas a felicidade do bebé ser nosso (finalmente), é incomparável
É chegada a possibilidade de o pegarmos ao colo sempre que desejarmos, de não nos despedirmos à noite para vir para uma casa que nos parece insuportavelmente vazia.
Toda a nossa vida e tudo o que nos rodeia parece ter ficado em pausa, numa respiração contida, numa estagnação de planos e uma vivência constante de medos. Como se as margens do rio avançassem, todos fossem seguindo as suas vidas, e nós permanecêssemos no nosso barco, parado, sem poder seguir viagem.
Tudo em casa espera a chegada do bebé que veio, sem chegar ainda. A cama vazia, as roupas nas gavetas que espreitamos sem demoras, para não nos desmoronarmos. Os brinquedos imóveis e demasiadamente arrumados. O silêncio.
A necessidade permanente de regressar ao hospital todas as manhãs, com o nó na garganta até ouvir a enfermeira dizer que esteve estável durante a noite. O desfiar das horas junto à incubadora, as más notícias a roubarem-nos a esperança de que um dia ele vá para casa. As boas notícias a reconstruírem os sonhos. O primeiro segurar dos seus dedos minúsculos, o primeiro colo, o primeiro olhar...
É uma viagem que tem tanto de sinuosa e dolorosa, como tem de extraordinariamente bonita. Pelo amor que se constrói, mesmo com um vidro entre nós e o tesouro maior das nossas vidas. O tempo vai passando... dias, ou semanas, ou até meses... até que finalmente, o nosso bebé é nosso.
Para levar para casa! Sem fios, sem um monitor, sem braços de enfermeiros para o devolvermos, sem vidros para nos separar. E tão imediatamente quanto a felicidade, visita-nos um medo paralisante. Como viver sem todas as ajudas que tivemos até esse dia? E se ele parar de respirar? E se houver sinais de que não está bem? E onde estão os números da saturação de oxigénio, da frequência cardíaca, da frequência respiratória, da tensão arterial? Onde estão os valores da gasimetria diária? A hemoglobina, a retenção de CO2? Para onde olharemos à procura da certeza de que o nosso bebé está bem? No lugar da equipa de dezenas de enfermeiros e de médicos, estamos apenas nós, pai e mãe, cada um de nós aterrorizado, a tentar tirar o medo um ao outro...
E chegarão pessoas, amigos, família, aos quais teremos que contar e explicar aquilo que nunca entenderão verdadeiramente. E como lhes pedir para desinfetarem as mãos, para não darem beijinhos, para não lhes pegarem se estiverem ligeiramente constipados...?
Como viver um percurso normal depois de tudo o que foi vivido? É como sair da linha de partida com uma maratona já feita... Não se parte da mesma forma que outros pais cujos filhos nasceram de termo. O barco pode finalmente seguir a viagem que tanto desejámos. Mas as margens estão diferentes, o percurso já mudou, o trajeto é outro...
Na viagem que começa ao chegarmos a casa, é necessário avaliar as sequelas da prematuridade, perceber o impacto neurológico e desenvolvimental nas várias metas que o bebé terá que atingir.
Precisam-se de bons profissionais que continuem a acompanhar-nos, terapeutas que compreendam o que é um bebé prematuro e uma família prematura. Que ofereçam respostas concretas, ajustadas, e verdadeiramente específicas para o nosso bebé. Apesar de todos estes desafios, nunca a viagem nos pareceu tão mágica, tão bonita, tão especial. O nosso bebé, com todos os medos, todas as marcas (nossas e dele), toda a viagem feita e por fazer... é, finalmente, nosso.
carlacintraoalmeida@gmail.com